quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Arquitetura das ideias

Para estruturar argumentos é preciso pensar o texto como uma rede de produção que inclui a leitura, a pesquisa e até sua realização

Leonardo Fuhrmann

A expressão "você é aquilo que você come" virou um símbolo entre os defensores da alimentação natural. O título do livro da nutricionista escocesa Gillian McKeith é também o nome de um programa televisivo do canal por assinatura GNT. A frase pode ser adaptada sem traumas para o processo de escrita. "Você escreve aquilo que você lê."

É claro que não basta ler as obras completas de Guimarães Rosa para escrever como ele. Mas, para contar sobre o seu método de escrever, o repórter José Hamilton Ribeiro retrata também os seus hábitos como leitor e recorda histórias que se passaram há 70 anos, na pequena Santa Rosa do Viterbo, cidade próxima a Ribeirão Preto, no interior de São Paulo.

Sobrinho e afilhado da dona da única livraria do povoado, Hamilton lembra que foi levado desde a infância pelo caminho das leituras.

- Quando chegou o pesadelo que Os Lusíadas era para qualquer garoto, eu já pensava que, para resistir por 400 anos, aquele texto tinha de ser muito bom. E assim curti suas imagens e o vocabulário rico - lembra.

Desde então, Ribeiro mantém o hábito da leitura, de escritores em geral, com algum destaque para os que exerceram o jornalismo. De Ernest

Hemingway aos brasileiros Euclides da Cunha e Guimarães Rosa, passando pelos latino-americanos Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa. Mas os autores de cabeceira dele são mesmo os poetas Manuel Bandeira e Fernando Pessoa, conta, para logo depois recitar de memória um trecho de "Vou-me embora pra Pasárgada", do primeiro.

Potência
Hamilton Ribeiro brinca com uma frase do cronista Rubem Braga. "Escrever é fácil: começa o texto com letra maiúscula e termina com o ponto final." Como em uma ciência exata, diz ter chegado a uma fórmula do grande texto argumentativo, que aplica ao jornalismo: G = (BC + BF) x (T x T')n. Ou seja, grande texto é um bom começo mais um bom final, multiplicado por talento vezes trabalho elevados à "potência necessária". Para ele, o bom começo desperta o interesse no leitor de chegar até o fim do texto.

- É o anzol que vai fisgar o leitor - compara.

O bom final vai lhe dar a satisfação de ter lido.

- É preciso deixar um gosto de quero mais, como naquele filme que você gostaria que tivesse mais alguns minutos - exemplifica.

Para explicar "potência necessária", ele recorre à história sobre o carro da rainha Elizabeth, do Reino Unido.

- Dizem que a Rolls-Royce construiu um carro para que ela pudesse percorrer suas terras sem correr o risco de atolar ou parar por falta de força no motor. Quando lhe perguntaram qual era a potência daquele carro para não falhar diante dos obstáculos, a rainha respondeu: a necessária - diz.

Começo
Autor de Pensamento Crítico e Argumentação Sólida, Sergio Navega afirma que um texto começa a ser construído quando quem escreve elabora a ideia que deseja transmitir, qual será a mensagem daquele texto. O passo seguinte é fundamentar a argumentação de modo que as conclusões fluam naturalmente no sentido da mensagem que deseja transmitir. A terceira parte, já no momento de redigir o texto, é criar uma empatia que torne aquele texto algo próximo ao leitor.

- Dependendo do objetivo do texto, uma dessas características pode se tornar mais importante do que as outras. Na literatura, por exemplo, a emoção é essencial - diz.

Navega destaca que o ponto de partida deve ser algo relevante e preciso, para que o autor tenha dados e argumentos suficientes para fundamentar a sua conclusão. É importante também que a pessoa que escreve encontre exemplos que aproximem o assunto do receptor. Ele cita como exemplo um texto de análise econômica.

- O autor pode tornar algo claro citando o exemplo de uma transação do cliente com a padaria e, a partir daí, tratar da relação das padarias com os fornecedores, com os concorrentes e com os demais consumidores - sugere.

Clareza
O desembargador José Renato Nalini, do Tribunal de Justiça de São Paulo, avalia que o grande desafio hoje é ser simples e direto em todos os campos. Assim deve ser também no Direito, diz ele, ainda mais hoje que grandes trechos de outras decisões podem ser recortados e colados facilmente com as ferramentas da informática.

- Costumo brincar que, se você precisa de 10 laudas para argumentar que tem algum direito, significa que esse direito não é tão evidente assim - avalia.

Nalini considera que o texto jurídico atualmente tem de se equilibrar entre a boa técnica e a clareza, que garante que o homem comum vá entender o que está decidido. Para ele, é preciso superar uma corrente de advogados, promotores e juízes que tende a abusar da linguagem difícil, recheada de termos latinos.

- A decisão é mais legítima quando as partes conseguem entender o que está escrito nela. O exercício da linguagem jurídica não pode ser uma finalidade em si - acredita.

A estrutura formal do texto jurídico é prevista na Constituição e nos Códigos de Processo Civil e Criminal: é preciso descrever o caso, fazer o enquadramento legal e fundamentar a decisão. Os recursos em geral se baseiam em contra-argumentar os fundamentos da decisão judicial. Nalini, que faz parte da Academia Paulista de Letras, afirma que a peça jurídica não pode ficar presa apenas ao Direito.

- Na medida em que uma decisão consegue estabelecer um diálogo com outras esferas do conhecimento, como a economia e a sociologia, suas ideias se tornam mais claras - opina.

Interpretação
Vencedor de cinco edições do Prêmio Esso de Jornalismo - o mais tradicional da profissão -, três delas na categoria informação científica, José Hamilton Ribeiro afirma que a precisão das informações e a clareza para o público leigo são mesmo essenciais.

- Uma grande reportagem não resiste a um termo mal colocado, mas também é preciso ser compreensível para quem não tem uma formação técnica - explica.

Para chegar ao ponto certo, Hamilton Ribeiro conta que tem o hábito até hoje de mostrar seus textos antes de serem publicados para especialistas na área e amigos que não são jornalistas nem técnicos no assunto.

Clareza depende do exercício da interpretação clara dos fatos que organizaremos com nossas palavras. A professora Elisa Guimarães, da pós-graduação em Letras do Mackenzie, diz que os alunos demonstram dificuldade em fazer sínteses, seja como leitores, seja no momento em que escrevem. Segundo ela, o problema fica claro no momento em que pede aos alunos que resumam um texto que leram, apontando o ponto central de cada parágrafo.

- Os resumos muitas vezes acabam ficando maiores do que o texto original - afirma.

Elisa admite que mesmo profissionais experientes sentem dificuldade em criar uma série de parágrafos em que cada um tenha uma ideia central e todos se interliguem. A solução, segundo ela, é organizar o texto do ponto de vista estrutural e em sua temática.

Antes de mais nada, o autor precisa ter em mente o formato do seu texto e os elementos inerentes. A narrativa é formada por introdução, desenvolvimento, clímax e desfecho. Uma dissertação começa com a apresentação da tese e segue com as provas lógicas e as evidências baseadas em fatos. O texto precisa também ser capaz de dialogar com o leitor, seguir coerente com a ideia central que o escritor pretende demonstrar e ter um vocabulário e um estilo que combinem com seu objetivo.

- Um professor não fala com os amigos em um bar da mesma forma que explica algo aos alunos na sala de aula, ainda que continue sendo a mesma pessoa nos dois momentos - exemplifica.

Por capítulos
A jornalista Arlete Salvador encarou o desafio de usar seus conceitos sobre a produção do bom texto em uma biografia com prazo de entrega e tamanho fixos. Depois dos livros A Arte de Escrever Bem e Escrever Melhor - Guia para Passar os Textos a Limpo, ambos ao lado de Dad Squarisi, ela foi convidada pela editora Contexto para escrever uma biografia de Cleópatra.

- O trabalho diário nas redações não nos obriga a organizar um texto tão claramente em capítulos e quais as informações que estão em cada um deles como quando estamos fazendo um livro, que é um texto muito maior - diz.

Antes de buscar pontos específicos sobre a vida da rainha egípcia, Arlete teve a preocupação de entender a história da personagem como um todo e o momento em que ela viveu. Com a visão geral sobre Cleópatra, ela passou a pesquisar sobre momentos e situações específicas. Concluída a coleta de informações, ela começou a organizar o material em capítulos e decidiu qual seria o fio condutor da trama e como os fatos iriam se entrelaçar. Nos textos dramatúrgicos, principalmente nos roteiros para cinema e TV, a organização da sequência dos capítulos (cenas e atos) é conhecida como escaleta.

- Quanto mais fiéis formos a essa estrutura preestabelecida, mais fácil será o processo de finalização do texto, quando juntamos todos os capítulos e construímos a unidade da obra - afirma a autora.

O jornalista Marcelo Coelho concilia em sua rotina de trabalho dois estilos de escrita absolutamente diferentes. Ao mesmo tempo que é articulista da Folha de S.Paulo, ele escreve contos e crônicas para o jornal Agora São Paulo com o nome de Voltaire de Souza, um heterônimo criado no fim dos anos 90 para o extinto Notícias Populares. A principal influência nos artigos é o sociólogo e filósofo francês Roland Barthes. Já Voltaire foi inspirado em A Vida Como Ela É e, além da referência óbvia de Nelson Rodrigues, reúne um estilo criado a partir dos textos de Dalton Trevisan e de um antigo colega de colegial de Coelho, Luiz Claudio Figueiredo Vieira. O jornalista conta que suas ideias e as do heterônimo raramente se interligam.

Ele tem uma forma própria de arquitetar o texto, sem construir um esboço prévio.

- Trabalho com uma imagem, uma metáfora que desejo inserir em algum momento. Gosto sempre de partir de uma borda, um fio solto, até chegar ao núcleo - explica.

Surpresa
Por conta do estilo menos formal, muitas vezes a ideia que serviu de mote inicial acaba sendo abandonada no decorrer do texto, tendo servido apenas como um estímulo inicial. O jornalista se preocupa com a linguagem que vai usar desde o desencadeamento da primeira frase. Para construir a sequência do texto, de forma a amarrar o leitor, Coelho conta que mantém sempre perguntas implícitas, que levam de um parágrafo para outro. José Hamilton Ribeiro também usa a estratégia de manter dúvidas para serem respondidas no decorrer do texto. E, sempre que possível, busca surpreender o leitor.

Manter o interesse do leitor é parte da tarefa de organizar os argumentos para defender uma ideia. Pois construir argumentos é uma cadeia de produção que inclui a preparação, a estruturação das ideias e a realização do texto. Não é possível argumentar bem sem boa base assim como não se estruturam ideias sem pensar como será o texto final. Tirar uma dessas pernas do tripé argumentativo é perder a razão antes mesmo de começar a defender seu ponto de vista. 


Intertextualidade

  • Tenha um roteiro que respeite uma lógica interna do texto;
  • Siga o que foi planejado;
  • Caso tenha de mudar o que estabeleceu, refaça o planejamento;
  • Procure a sensatez: use o raciocínio lógico para fundamentar sua argumentação;
  • Faça a síntese dos itens mais importantes;
  • Esteja atento à necessidade de dosar informações e depoimentos durante o texto;
  • Pense no tipo de texto que está produzindo para não confundir gêneros na hora de escrever: um artigo não é um discurso de palanque;
  • Defina seus argumentos com cuidado: não ceda à tentação de ser a caricatura de si mesmo.


Preparando as ideias
  • É preciso ler constantemente, sobretudo bons autores;
  • Pesquise em fontes confiáveis o assunto sobre o qual vai escrever;
  • Um bom texto técnico deve dialogar com outras áreas do conhecimento: diversificar suas fontes representará uma surpresa para o leitor;
  • Um bom final é fundamental para satisfazer o leitor: reserve um argumento eficaz para o fim, que repercuta a ideia defendida no início.


Criando o texto
  • Lembre-se de quem será o leitor daquele texto;
  • Não use a linguagem para disfarçar a falta de conteúdo;
  • Busque a empatia do leitor: cuidado para não soar arrogante ou prepotente;

  • Prenda o leitor desde o começo: prepare uma introdução inesperada;
  • Seja claro naquilo que você quer comunicar;
  • A linguagem deve levar em conta o destinatário;
  • Procure um adjetivo que não seja banal;
  • Varie a estrutura sintática;
  • Nunca feche o parágrafo em si mesmo.

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