quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Formas que se encaixam

Mais do que ao conteúdo, é preciso estar atento à forma como muitos textos apresentam suas mensagens para melhor compreendê-los

Sírio Possenti

Vigora ainda muito fortemente uma ideia antiga, a de que a língua é meio de comunicação, sendo que "comunicação", nesta teoria, significa basicamente informação. É óbvio que há textos (ou gêneros) cuja finalidade é informativa (o endereço da empresa é...; o horário da festa é...; a programação cinematográfica é...; o índice da inflação foi de...). Textos científicos têm esta característica muito marcada.

Mas há muitos textos cuja finalidade não é comunicar, muito menos informar. É perfeitamente possível que eles também deem um recado, tenham um "conteúdo" ou sejam uma tomada de posição (sobre a vida, a poesia, etc.). Mas o fundamental, nesses casos, não está no recado, mas na maneira de dar este recado. Melhor: o recado é o que é especialmente porque é dado de uma forma determinada.

Considere-se o slogan da Petrobras: "o desafio é a nossa energia". Que não se pergunte  a ninguém, por favor, qual é o desafio da Petrobras. Ou, pelo menos, que não se pergunte só isso. É que esse slogan é o que é exatamente porque tem uma dupla leitura. E o recado do slogan é a dupla leitura, não apenas uma delas: o slogan diz que o desafio da empresa é a energia, isto é, encontrar, produzir a energia, a nossa energia ("nossa" quer dizer do país, provavelmente). Um dos sentidos é, então 'temos o desafio de produzir a energia de que o país precisa". Mas o outro sentido é tão importante quanto esse, e ele se refere ao funcionamento da empresa: o desafio a que a empresa é submetida é a energia da empresa - aqui, "nossa" quer dizer 'da empresa' (como quem diz: somos movidos a desafios, é o desafio que nos move, ele é a nossa energia - e não o sucesso, ou os salários, etc.).

Como esse efeito é obtido? Um dos sentidos do verbo "ser" é de inclusão de uma classe em outra ("os homens são mortais" quer dizer que os homens pertencem ao conjunto das criaturas mortais, classe que contém outros elementos além dos homens, como os dinossauros e as pulgas...). Outro efeito é o de identificação. Um exemplo é "Brasília é capital do Brasil", que não é lida como significando que Brasília é uma das capitais do Brasil, mas como equivalente de "a capital do Brasil é Brasília" (faço de conta que não se coloca aqui um clássico problema, o da diferença entre "Brasília é capital do Brasil" e "Brasília é Brasília", que Frege teria resolvido).

Ora, o slogan joga com os dois sentidos, captáveis em duas formulações: 'o desafio é nossa energia' e 'a energia é nosso desafio'. Em cada caso há um implícito, que coloco entre parênteses: 'o desafio é nossa energia (a que nos move)', '(produzir) energia é nosso desafio'.

Forma
Este tipo de leitura, que leva em conta explicitamente a forma, é ainda mais importante em textos cuja finalidade principal não é "uma mensagem" (embora ela possa existir e ser relevante), mas "ser poesia" ou "ser piada". Considere-se o seguinte poema, que se tornou bastante conhecido, cujo título é RECEITA DE HERÓI (de Reinaldo Ferreira):

"Tome-se um homem feito de nada
Como nós, em tamanho natural

Embeba-se-lhe a carne
Lentamente
De uma certeza aguda, irracional
Intensa como o ódio ou como a
fome.

Depois, perto do fim
Agite-se um pendão
E toque-se um clarim.

Serve-se morto" 

O título ajuda a ler o texto. Pode-se verificar que as quatro partes do poema correspondem a partes de uma receita culinária (resumo: pegue dois quilos de costela, tempere com sal grosso, (ponha na grelha), deixe assar durante duas horas e sirva com mandioca cozida). "Ponha na grelha" está entre parênteses porque é uma etapa da receita que não tem correspondente no poema.

Uma das leituras deste poema, digamos, a informativa, mostrará que ele considera que o herói é um homem comum, que, mais ou menos fanatizado, é levado a morrer. Palavras como "pendão" e "clarim" indicam que se trata de um herói (ou de um anti-herói) militar: um anônimo que é levado a morrer por uma causa (de outros, talvez).

O poema também diz, de certa forma, que heróis deste tipo podem ser produzidos em série. Segundo esta leitura, trata-se de um herói diferente dos que cultivamos habitualmente, que são uma espécie de super-homem ou semideus (inspirado talvez nas epopeias).

Mas esta leitura é apenas meia leitura. Ou menos do que isso. Porque o fundamental nesse poema é sua forma, a de receita, que é exatamente o tipo de texto que ensina a fazer coisas em série. Se há uma mensagem, ela é apresentada da melhor das maneiras conhecidas, em um texto de grande eficácia "pragmática".

Explicitar esse fato é o que mais importa. E, convenhamos, é algo difícil de fazer em testes ditos objetivos...

Sírio Possenti é professor associado do departamento de linguística da Unicamp e autor de Humor, Língua e Discurso (Contexto)


Arquitetura das ideias

Para estruturar argumentos é preciso pensar o texto como uma rede de produção que inclui a leitura, a pesquisa e até sua realização

Leonardo Fuhrmann

A expressão "você é aquilo que você come" virou um símbolo entre os defensores da alimentação natural. O título do livro da nutricionista escocesa Gillian McKeith é também o nome de um programa televisivo do canal por assinatura GNT. A frase pode ser adaptada sem traumas para o processo de escrita. "Você escreve aquilo que você lê."

É claro que não basta ler as obras completas de Guimarães Rosa para escrever como ele. Mas, para contar sobre o seu método de escrever, o repórter José Hamilton Ribeiro retrata também os seus hábitos como leitor e recorda histórias que se passaram há 70 anos, na pequena Santa Rosa do Viterbo, cidade próxima a Ribeirão Preto, no interior de São Paulo.

Sobrinho e afilhado da dona da única livraria do povoado, Hamilton lembra que foi levado desde a infância pelo caminho das leituras.

- Quando chegou o pesadelo que Os Lusíadas era para qualquer garoto, eu já pensava que, para resistir por 400 anos, aquele texto tinha de ser muito bom. E assim curti suas imagens e o vocabulário rico - lembra.

Desde então, Ribeiro mantém o hábito da leitura, de escritores em geral, com algum destaque para os que exerceram o jornalismo. De Ernest

Hemingway aos brasileiros Euclides da Cunha e Guimarães Rosa, passando pelos latino-americanos Gabriel García Márquez e Mario Vargas Llosa. Mas os autores de cabeceira dele são mesmo os poetas Manuel Bandeira e Fernando Pessoa, conta, para logo depois recitar de memória um trecho de "Vou-me embora pra Pasárgada", do primeiro.

Potência
Hamilton Ribeiro brinca com uma frase do cronista Rubem Braga. "Escrever é fácil: começa o texto com letra maiúscula e termina com o ponto final." Como em uma ciência exata, diz ter chegado a uma fórmula do grande texto argumentativo, que aplica ao jornalismo: G = (BC + BF) x (T x T')n. Ou seja, grande texto é um bom começo mais um bom final, multiplicado por talento vezes trabalho elevados à "potência necessária". Para ele, o bom começo desperta o interesse no leitor de chegar até o fim do texto.

- É o anzol que vai fisgar o leitor - compara.

O bom final vai lhe dar a satisfação de ter lido.

- É preciso deixar um gosto de quero mais, como naquele filme que você gostaria que tivesse mais alguns minutos - exemplifica.

Para explicar "potência necessária", ele recorre à história sobre o carro da rainha Elizabeth, do Reino Unido.

- Dizem que a Rolls-Royce construiu um carro para que ela pudesse percorrer suas terras sem correr o risco de atolar ou parar por falta de força no motor. Quando lhe perguntaram qual era a potência daquele carro para não falhar diante dos obstáculos, a rainha respondeu: a necessária - diz.

Começo
Autor de Pensamento Crítico e Argumentação Sólida, Sergio Navega afirma que um texto começa a ser construído quando quem escreve elabora a ideia que deseja transmitir, qual será a mensagem daquele texto. O passo seguinte é fundamentar a argumentação de modo que as conclusões fluam naturalmente no sentido da mensagem que deseja transmitir. A terceira parte, já no momento de redigir o texto, é criar uma empatia que torne aquele texto algo próximo ao leitor.

- Dependendo do objetivo do texto, uma dessas características pode se tornar mais importante do que as outras. Na literatura, por exemplo, a emoção é essencial - diz.

Navega destaca que o ponto de partida deve ser algo relevante e preciso, para que o autor tenha dados e argumentos suficientes para fundamentar a sua conclusão. É importante também que a pessoa que escreve encontre exemplos que aproximem o assunto do receptor. Ele cita como exemplo um texto de análise econômica.

- O autor pode tornar algo claro citando o exemplo de uma transação do cliente com a padaria e, a partir daí, tratar da relação das padarias com os fornecedores, com os concorrentes e com os demais consumidores - sugere.

Clareza
O desembargador José Renato Nalini, do Tribunal de Justiça de São Paulo, avalia que o grande desafio hoje é ser simples e direto em todos os campos. Assim deve ser também no Direito, diz ele, ainda mais hoje que grandes trechos de outras decisões podem ser recortados e colados facilmente com as ferramentas da informática.

- Costumo brincar que, se você precisa de 10 laudas para argumentar que tem algum direito, significa que esse direito não é tão evidente assim - avalia.

Nalini considera que o texto jurídico atualmente tem de se equilibrar entre a boa técnica e a clareza, que garante que o homem comum vá entender o que está decidido. Para ele, é preciso superar uma corrente de advogados, promotores e juízes que tende a abusar da linguagem difícil, recheada de termos latinos.

- A decisão é mais legítima quando as partes conseguem entender o que está escrito nela. O exercício da linguagem jurídica não pode ser uma finalidade em si - acredita.

A estrutura formal do texto jurídico é prevista na Constituição e nos Códigos de Processo Civil e Criminal: é preciso descrever o caso, fazer o enquadramento legal e fundamentar a decisão. Os recursos em geral se baseiam em contra-argumentar os fundamentos da decisão judicial. Nalini, que faz parte da Academia Paulista de Letras, afirma que a peça jurídica não pode ficar presa apenas ao Direito.

- Na medida em que uma decisão consegue estabelecer um diálogo com outras esferas do conhecimento, como a economia e a sociologia, suas ideias se tornam mais claras - opina.

Interpretação
Vencedor de cinco edições do Prêmio Esso de Jornalismo - o mais tradicional da profissão -, três delas na categoria informação científica, José Hamilton Ribeiro afirma que a precisão das informações e a clareza para o público leigo são mesmo essenciais.

- Uma grande reportagem não resiste a um termo mal colocado, mas também é preciso ser compreensível para quem não tem uma formação técnica - explica.

Para chegar ao ponto certo, Hamilton Ribeiro conta que tem o hábito até hoje de mostrar seus textos antes de serem publicados para especialistas na área e amigos que não são jornalistas nem técnicos no assunto.

Clareza depende do exercício da interpretação clara dos fatos que organizaremos com nossas palavras. A professora Elisa Guimarães, da pós-graduação em Letras do Mackenzie, diz que os alunos demonstram dificuldade em fazer sínteses, seja como leitores, seja no momento em que escrevem. Segundo ela, o problema fica claro no momento em que pede aos alunos que resumam um texto que leram, apontando o ponto central de cada parágrafo.

- Os resumos muitas vezes acabam ficando maiores do que o texto original - afirma.

Elisa admite que mesmo profissionais experientes sentem dificuldade em criar uma série de parágrafos em que cada um tenha uma ideia central e todos se interliguem. A solução, segundo ela, é organizar o texto do ponto de vista estrutural e em sua temática.

Antes de mais nada, o autor precisa ter em mente o formato do seu texto e os elementos inerentes. A narrativa é formada por introdução, desenvolvimento, clímax e desfecho. Uma dissertação começa com a apresentação da tese e segue com as provas lógicas e as evidências baseadas em fatos. O texto precisa também ser capaz de dialogar com o leitor, seguir coerente com a ideia central que o escritor pretende demonstrar e ter um vocabulário e um estilo que combinem com seu objetivo.

- Um professor não fala com os amigos em um bar da mesma forma que explica algo aos alunos na sala de aula, ainda que continue sendo a mesma pessoa nos dois momentos - exemplifica.

Por capítulos
A jornalista Arlete Salvador encarou o desafio de usar seus conceitos sobre a produção do bom texto em uma biografia com prazo de entrega e tamanho fixos. Depois dos livros A Arte de Escrever Bem e Escrever Melhor - Guia para Passar os Textos a Limpo, ambos ao lado de Dad Squarisi, ela foi convidada pela editora Contexto para escrever uma biografia de Cleópatra.

- O trabalho diário nas redações não nos obriga a organizar um texto tão claramente em capítulos e quais as informações que estão em cada um deles como quando estamos fazendo um livro, que é um texto muito maior - diz.

Antes de buscar pontos específicos sobre a vida da rainha egípcia, Arlete teve a preocupação de entender a história da personagem como um todo e o momento em que ela viveu. Com a visão geral sobre Cleópatra, ela passou a pesquisar sobre momentos e situações específicas. Concluída a coleta de informações, ela começou a organizar o material em capítulos e decidiu qual seria o fio condutor da trama e como os fatos iriam se entrelaçar. Nos textos dramatúrgicos, principalmente nos roteiros para cinema e TV, a organização da sequência dos capítulos (cenas e atos) é conhecida como escaleta.

- Quanto mais fiéis formos a essa estrutura preestabelecida, mais fácil será o processo de finalização do texto, quando juntamos todos os capítulos e construímos a unidade da obra - afirma a autora.

O jornalista Marcelo Coelho concilia em sua rotina de trabalho dois estilos de escrita absolutamente diferentes. Ao mesmo tempo que é articulista da Folha de S.Paulo, ele escreve contos e crônicas para o jornal Agora São Paulo com o nome de Voltaire de Souza, um heterônimo criado no fim dos anos 90 para o extinto Notícias Populares. A principal influência nos artigos é o sociólogo e filósofo francês Roland Barthes. Já Voltaire foi inspirado em A Vida Como Ela É e, além da referência óbvia de Nelson Rodrigues, reúne um estilo criado a partir dos textos de Dalton Trevisan e de um antigo colega de colegial de Coelho, Luiz Claudio Figueiredo Vieira. O jornalista conta que suas ideias e as do heterônimo raramente se interligam.

Ele tem uma forma própria de arquitetar o texto, sem construir um esboço prévio.

- Trabalho com uma imagem, uma metáfora que desejo inserir em algum momento. Gosto sempre de partir de uma borda, um fio solto, até chegar ao núcleo - explica.

Surpresa
Por conta do estilo menos formal, muitas vezes a ideia que serviu de mote inicial acaba sendo abandonada no decorrer do texto, tendo servido apenas como um estímulo inicial. O jornalista se preocupa com a linguagem que vai usar desde o desencadeamento da primeira frase. Para construir a sequência do texto, de forma a amarrar o leitor, Coelho conta que mantém sempre perguntas implícitas, que levam de um parágrafo para outro. José Hamilton Ribeiro também usa a estratégia de manter dúvidas para serem respondidas no decorrer do texto. E, sempre que possível, busca surpreender o leitor.

Manter o interesse do leitor é parte da tarefa de organizar os argumentos para defender uma ideia. Pois construir argumentos é uma cadeia de produção que inclui a preparação, a estruturação das ideias e a realização do texto. Não é possível argumentar bem sem boa base assim como não se estruturam ideias sem pensar como será o texto final. Tirar uma dessas pernas do tripé argumentativo é perder a razão antes mesmo de começar a defender seu ponto de vista. 


Intertextualidade

  • Tenha um roteiro que respeite uma lógica interna do texto;
  • Siga o que foi planejado;
  • Caso tenha de mudar o que estabeleceu, refaça o planejamento;
  • Procure a sensatez: use o raciocínio lógico para fundamentar sua argumentação;
  • Faça a síntese dos itens mais importantes;
  • Esteja atento à necessidade de dosar informações e depoimentos durante o texto;
  • Pense no tipo de texto que está produzindo para não confundir gêneros na hora de escrever: um artigo não é um discurso de palanque;
  • Defina seus argumentos com cuidado: não ceda à tentação de ser a caricatura de si mesmo.


Preparando as ideias
  • É preciso ler constantemente, sobretudo bons autores;
  • Pesquise em fontes confiáveis o assunto sobre o qual vai escrever;
  • Um bom texto técnico deve dialogar com outras áreas do conhecimento: diversificar suas fontes representará uma surpresa para o leitor;
  • Um bom final é fundamental para satisfazer o leitor: reserve um argumento eficaz para o fim, que repercuta a ideia defendida no início.


Criando o texto
  • Lembre-se de quem será o leitor daquele texto;
  • Não use a linguagem para disfarçar a falta de conteúdo;
  • Busque a empatia do leitor: cuidado para não soar arrogante ou prepotente;

  • Prenda o leitor desde o começo: prepare uma introdução inesperada;
  • Seja claro naquilo que você quer comunicar;
  • A linguagem deve levar em conta o destinatário;
  • Procure um adjetivo que não seja banal;
  • Varie a estrutura sintática;
  • Nunca feche o parágrafo em si mesmo.