sábado, 8 de outubro de 2011

Cuidado com a crase

O sinal indicativo da crase sobrevive apesar de seus detratores; saber empregá-lo pode reforçar a mensagem e evitar dúvidas de sentido

Chico Viana

Poucos assuntos geram tanta polêmica no domínio da gramática quanto a crase. Não foram poucos os que já se manifestaram contra ela. O deputado João Hermann Neto, falecido em 2010, chegou a apresentar um projeto de lei para extingui-la. Alegava que "o acento não faz falta", trata-se de um "sinal obsoleto que o povo já fez morrer". O humorista Millôr Fernandes parece ter opinião idêntica. Em entrevista aLíngua, afirmou que "se todo mundo erra na crase é a regra da crase que está errada". O escritor Moacyr Scliar identificou um "medo existencial" a ela, como se visse um traço hamletiano nas dúvidas sobre o seu emprego. Crasear ou não crasear - eis a questão.

Reconhecendo que a crase parecia mesmo ter-se transformado num "grave problema ortográfico e existencial", o poeta Ferreira Gullar cunhou há décadas aforismos sobre o assunto. O mais popular deles é o de que "a crase não foi feita para humilhar ninguém". Gullar a defendia, criticando escritores, jornalistas e escrevinhadores que "tremiam diante de certos aa", mas suas palavras acabaram servindo de argumento aos que a detratavam. Entendeu-se que ele pretendia livrar as pessoas da dolorosa obrigação de crasear, e não aconselhá-las a estudar português. Uma das justificativas de Hermann para seu projeto foi a de que a crase "só serve para humilhar". Dava a entender que a extinção do "acento" (sic) pouparia os brasileiros do vexame de não saber usá-lo. 
(...)


A fórmula infalível
Um simples procedimento pode determinar o uso ou não do acento indicativo de crase
Uma dica para saber se o a recebe acento indicativo de crase é substituir a palavra feminina que vem depois dele por outra masculina. Caso no masculino ocorra aglutinação (ao, aos = a+o, a+os), no feminino há crase (à, às = a+a, a+as). Compare:

Petra vai ao distrito amanhã. (a+o) - Petra vai à cidade amanhã. (a+a)
Meu estojo é semelhante ao seu. (a+o) - Minha bolsa é semelhante à sua. (a+a)

"Aquele" e "aquilo" não são formas femininas mas a crase pode ocorrer antes deles, pois começam por a : "Deu àquele amigo o melhor que tinha", "Não faça mais referência àquilo".





MAIS QUE A PRESENÇA DA PREPOSIÇÃO


"De moda a eletrônicos": o a não recebe acento por ser só preposição. E permaneceria sem mesmo se viesse antes de termo feminino, para se correlacionar com "de"

Com ou sem crase?
As várias situações em que o uso da crase é (ou não) indicado
1. O acento indicativo de CRASE OCORRE: 
  • Antes das palavras "casa", "distância" e "terra", quando estão determinadas: "Depois de muito viajar, cheguei à casa de meus avós", "O acidente ocorreu à distância de dois metros da amurada", "Volto à terra de meus pais". Caso inexista determinação, não ocorre a crase: "Depois do almoço, ele voltou acasa", "Observou a cena a distância" "O avião desceu a terra", "Depois de meses, os marinheiros voltaram a terra";
  • Antes de nomes próprios desde que venham antecedidos das locuções, ocultas, "à moda de", "à maneira de": "Joaquim escreve à Graciliano Ramos". No entanto: "Joaquim escreve a Graciliano Ramos" - caso ele escreva paraGraciliano;
  • Antes dos numerais indicativos das horas: "Chegou à uma hora.", "João saiu àstrês horas". Mas "Pedro sairá a uma hora qualquer" (hora indeterminada).
  • Nas locuções adverbiais, prepositivas e conjuntivas formadas com palavras femininas: à vista, à deriva, à toa, à máquina; à custa de, à mercê de, à feição de; à medida que, à proporção que etc. Mas: "Escreveu a lápis" (lápis é masculino).
Atenção: em "Resolveu atender a nossas súplicas", o a é apenas preposição. Constituiria um erro acentuá-lo. Errado também seria escrever "Resolveu atender asnossas súplicas", pois nesse caso haveria menção apenas ao artigo.
2. NÃO HÁ CRASE antes de:
  • Palavra masculina: Passeia pela fazenda a cavalo;
  • Palavras repetidas: Fez a tarefa passo a passo;
  • Verbo no infinitivo: Estava a cantar no banheiro;
  • Artigos e pronomes indefinidos: "Fez referência a uma moça do bairro", "Não devo nada a ninguém";
  • Pronomes interrogativos, demonstrativos (com exceção de "aquele", "aquela", "aquilo"), pessoais, relativos e de tratamento: "A que matéria te referes?", "Estamos atentos a essa nova tendência do mercado", "Entregueia ela o memorando", "A festa a que me referi ocorreu ontem", Afirmo a Vossa Senhoria que não menti";
  • Após preposição: "Chegou desde a semana passada", "Jurou perante a filha que era inocente".
Atenção: a regra acima explica a inexistência do acento grave sobre o "a(s)" em frases do tipo "Ficarei lá até a 1h.", "Está comigo desde as 19h", "O início do espetáculo está marcado para as 21h". 
3. Quando se PODE OU NÃO indicar a crase:
A indicação da crase é facultativa antes de pronomes possessivos e de nomes próprios do gênero feminino, pois eles podem vir ou não precedidos de artigo. "A professora fez um elogio a(à) minha redação", "Dei a(à) Laura o melhor de mim".
Outros casos
  • Há crase antes do pronome relativo "que" quando a preposição está fundida a um pronome demonstrativo: "Esta saia é igual à que você viu no shopping". No masculino, teríamos: "igual ao que".
  • Há quem questione o sinal de crase em locuções adverbiais com palavras femininas, alegando que no masculino não há o artigo. Ninguém diz "Escreveuao lápis". Logo, não haveria "Escreveu à caneta". Mas sem o acento pode-se confundir preposição com artigo. O risco não existe se o núcleo do adjunto está no masculino. Não se interpreta o a como artigo em "Furou o ladrão acanivete." O mesmo não se pode dizer de "Furou o ladrão a faca", em que se pode entender, na ordem indireta, que "a faca furou o ladrão". Se alguém "cheira a alecrim", exala o odor do arbusto; se "cheira a alfazema", pode estar aspirando o aroma. Por isso, orienta-se indicar a crase nessas locuções.
  • Exceção possível é "a distância". Mesmo sem determinação, registra-se crase para evitar confusão. "Percebeu o menino à distância" (o menino foi percebido "ao longe"). "O engenheiro avalia à distância" (de ponto distante). Sem acento, a distância é que foi percebida e avaliada.



PALAVRAS REPETIDAS


"Dia a dia": a crase não ocorre entre palavras que se repetem, o que é seguido pelo anúncio publicitário

Estratégias de estudo
A própria definição de crase (fusão de preposição com artigo) aponta as melhores estratégias para o seu estudo. Uma delas é procurar reconhecer a regência dos verbos e nomes que transitam para seus complementos por meio da preposição a. Alguns desses verbos são "dar", "assistir", "referir-se", "ascender", "fugir", "aludir". Entre os nomes, podem-se citar "avesso", "infenso", "hostil", "alergia", "movido", etc.
Distinguir a presença do artigo é a outra condição para que se assinale corretamente a crase. Nem sempre uma palavra do gênero feminino está usada com sentido definido. Isso depende, muitas vezes, da intenção do falante. Eis alguns exemplos do uso genérico dessas palavras: avesso a badalação, infenso a crítica, hostil a balbúrdia, alergia a laranja, movido a adrenalina. Nesses casos os monossílabos grifados são preposições e, obviamente, não podem receber o acento grave. 

Disponível em: http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=12408

Nenhum comentário:

Postar um comentário